Em 2021, quase 800 empresas tiveram falência ou recuperação judicial decretadas no estado de São Paulo. E, até setembro deste ano, já eram mais do que o total registrado em 2020.
Por trás dos números, há pequenos empresários, funcionários, famílias inteiras que perderam a fonte de renda – e que, muitas vezes, sequer entram nas estatísticas devido à informalidade do pequeno negócio.
A vida depois da falência está longe de ser um caminho igual para todos. Abaixo, leia histórias de quem viu seu negócio fechar as portas – e o que aconteceu depois disso.
As dívidas
Elias Santos tem 31 anos, duas filhas e dívidas de mais de R$ 10 mil – fruto dos meses finais de sua empresa, agora fechada. Junto com a esposa, Elias abriu uma loja de cosméticos em 2019, usando o dinheiro da rescisão de um emprego anterior. Era a aposta de sua família para estabilidade e renda em Caraguatatuba, no litoral de São Paulo, uma cidade com poucas ofertas de trabalho.
Com as vendas cada vez mais minguantes, os gastos fixos com aluguel, contas e compra de mercadoria passaram a ser muito maiores que a renda. A atividade baixa começou a pesar no orçamento já no começo da pandemia.
O aperto com as contas da loja logo se transformou em aperto nas contas de casa. Com uma empresa pequena, era difícil separar o que era de cada uma. Faltou dinheiro para o aluguel da casa, para produtos da loja, para as compras das crianças.
Sem ter como aguentar mais um mês, precisaram desistir do sonho de ter o próprio negócio. A loja fechou em agosto de 2022 e eles precisaram se mudar para uma casa menor, para diminuir um terço do aluguel.
Com o estoque que ainda têm, passaram a vender pelo WhatsApp e Instagram e guardar os produtos num cantinho da casa. E as dívidas com os fornecedores foram parceladas.
A volta por cima
Isabele Moreira, especialista em desenvolvimento de negócios — Foto: Divulgação
Isabele Moreira chegou ao fundo do poço em 2017. Depois de trabalhar por anos como treinadora comportamental, ela resolveu empreender e abrir sua própria empresa de treinamento corporativo em 2015.
"Eu era boa treinadora, mas não sabia pensar como empresária. Não sabia prospectar clientes, precificar meu trabalho, não conhecia as políticas internas das empresas. Cobrava pouco, trabalhava em excesso e a conta não fechava", conta.
No ano seguinte, com a turbulência política e a crise econômica, ela sentiu ainda mais dificuldade com a clientela corporativa, e se viu envolta em dívidas adquiridas durante a operação da empresa. Ela pensou em fechar as portas, mas essa era a única fonte de renda que tinha. A situação escalou até atingir diversos aspectos de sua vida.
"Eu achava que, se eu trabalhasse cada vez mais, iria compensar a falta de dinheiro. Então eu trabalhava muitas horas, mas era pouco eficaz. Isso atropelou minha vida financeira, eu fiquei com meu nome sujo, devendo mais de R$ 100 mil. Cheguei a dever nove meses da escola da minha filha, a escola do meu filho me processou. Eu devia cartão de crédito, usava o cartão da minha mãe e não conseguia pagar, atrasei conta de luz, não conseguia comprar comida. Impactou também meu emocional, meu casamento acabou", diz Moreira.
Enquanto enfrentava o endividamento e a separação, Isabele decidiu tentar de novo, dessa vez com uma empresa de soluções digitais de educação. Ela tocou as duas empresas por dois anos, até que a nova estivesse estruturada. Em 2018, o negócio digital já dava lucro suficiente, e ela passou a operar apenas com essa empresa.
"Comecei a construir no meio do caos do outro. Esse negócio que eu tenho hoje e que vim construindo da forma certa já faturou quase R$ 20 milhões. Consegui pagar todas as dívidas, enriquecer, tenho um negócio que me faz feliz, tive outro filho depois disso.”
Crimes e fraudes
Quando a falência de uma empresa é decretada na Justiça, os bens e ativos deixados por ela são usados para abater as dívidas, em uma ordem específica de pagamento: primeiro o fisco, com dívidas de impostos; depois, as dívidas trabalhistas; e, por último, os credores.
Mesmo que o dinheiro da empresa não seja suficiente para pagar todas as dívidas, isso não vai impactar os bens dos sócios. Ou seja, a Justiça não pode "pegar" dinheiro dos empresários para pagar as dívidas da empresa. Há uma exceção, chamada de desconsideração da personalidade jurídica. Ela acontece apenas em casos de comprovação de fraude no processo de falência, como o uso de laranjas.
No sistema de consulta a processos do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), há mais de 3 milhões de procedimentos jurídicos envolvendo crimes falimentares. Esses procedimentos correspondem a cada etapa da investigação. Mas não é possível, dentro desse mar de dados, contabilizar quantos crimes foram julgados como fraude.
A promotora do MPSP especializada no tema, Maria Cristina Viegas, atua na área há 30 anos. Ela conta que, atualmente, o tribunal em que trabalha recebe 30 processos por semana das áreas de falência, recuperação judicial e liquidação extrajudicial.
Durante sua atuação, ela viu e tocou investigações de fraudes, principalmente as que envolvem tentativas de mascarar dinheiro e bens da empresa para não pagar os credores. Uma dessas é o crédito simulado ou falso. Ele acontece quando uma pessoa finge ser um credor daquela empresa, com documento falso, para entrar na fila de pagamento da massa falida. Como esse empréstimo nunca aconteceu, o dinheiro volta para o bolso do empresário.
"Muito frequentemente, o falido transfere o patrimônio para terceiros, percebendo que a falência é iminente. Porque, a não ser que ocorra um evento muito significativo, esse processo demora e o empresário percebe que não vai dar conta. Então ele começa a se desfazer de imóveis, veículos, móveis, maquinário, vendendo tudo abaixo do preço para tentar salvar o patrimônio. Esse é o nosso dia a dia”, explica.
"Mas alguém sempre vê porque, nesse tipo de operação, deixa-se rastros. Hoje em dia, a Justiça não está com os olhos vendados", ela diz. Resolver as fraudes, no entanto, pode levar anos. No tribunal em que a promotora atua, há processos que correm há mais de 30 anos e envolvem tantas etapas e documentos que se tornam muito difíceis de apurar.
Um dos casos mais emblemáticos que passou por suas mãos foi o de uma empresa telefonia italiana, responsável pela instalação da Tim no Brasil. A empresa pediu concordata (equivalente à recuperação judicial) em 2005, apenas dois anos depois de iniciar as operações no país, deixou um calote milionário em mais de 100 fornecedores e, antes de falir, mandou quantias enormes para o exterior.
O MP investigava se a empresa atuava como laranja da Telecom italiana para encobrir transações irregulares e corrupção. Entre os crimes investigados, estavam falsidade ideológica, omissão e extravio de documentos e desvio de bens. "Foi um processo bastante tumultuado e cabeludo. Até hoje, o processo para comprovar a fraude está em andamento", diz.